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pólo sul

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Sab | 27.05.06

[25] A vida por uma palavra

polosul

 

A palavra, e depois a ideia, destilam uma tal intensidade que sou incapaz de dizer “amo-te”, ou chamá-la por “ó amor!”; nem sequer me atrevo a dizer carinhosamente “amorzinho”. Os anos iam-se e eu sem o conseguir dizer.

 

Um dia declarei que me queria separar dela, era a primeira vez que adoptava uma medida tão extrema para um problema tão comezinho. Quer dizer, não queria bem a separação, era mais encenar a minha incapacidade em dizer-lhe aquilo. Mas não resultou. Tudo por causa do olhar suplicante da minha mãe, do ar desorientado das minhas filhas e sobretudo das inevitáveis conjecturas estúpidas da vizinhança que ao virar da primeira esquina, enquanto me apertavam o bacalhau, insistiam: “Mas está mesmo tudo bem consigo?”

 

Depois desatei a comer, engordei, a barriga, as ancas, as papadas, os braços e até os pés e as mamas incharam de gordura. A princípio tive uma centelha de bom senso e cortei nos doces, mas descontrolei-me e foi o desastre. Tomei consciência de que tinha um ar gelatinoso, que as pessoas olhavam e pensavem "que horror" ou “coitado, está deformado!”

 

Depois entrei numa fase piegas e chorava onde e quando calhava, não por lembrar-me do meu aspecto desleixado e incapacitado, mas porque continuava a não conseguir dizer à minha mulher “amo-te”. As minhas filhas não percebiam, a minha mãe ralhava-me e eu ficava-me por ali, bloqueado, como uma alforreca.

 

Um dia pus-me a estudar: a pesquisar nos livros, a descodificar as pinturas, a ouvir música e a observar atentamente a dança. Lia cada vez mais e de tudo, ia às exposições de fotografia, aos ciclos de cinema, assistia a peças de teatro experimental e passava horas infindáveis na Internet. Frequentei chats, troquei mensagens, participei em fóruns gerais e temáticos. Recomecei a psicoterapia, experimentei a psicanálise e acabei num consultório psiquiátrico 60 quilos depois.

 

Esta noite contemplo-me e pergunto-me, estupefacto: porque é que só hoje, quando ela partiu definitivamente, é que lhe disse que a amo?

nortadas

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    polosul

    28.05.06

    De manhã, quando vou trabalhar, observo as pessoas, tomo notas e escrevo. Imagino-as. procuro decifrá-las.

    Obrigado pela companhia :-)
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