[22] Aonde?
Enquanto a Joana brincava silenciosamente com as bonecas, refugiada atrás daquele maciço sofá, ouviu-os:
Pai: “Ela é de outra fibra, de outro sangue!”
Mãe: “São iguais!”
Pai: “A Carla é melhor!”
Mãe: “Chiu! A Joana pode ouvir!”
E desde então a Joana nunca conseguiu ser melhor que a irmã, e quando o era, o pai esforçava-se por lhe chamar pura sorte. O que a Joana pensava, fazia ou desejava era considerado, respectivamente, estúpido, inútil e adiado sine die. E foi assim que a Joana nunca saiu da aldeia, deixou a escola cedo, não casou, não teve filhos e quando nos conhecemos os olhos dela rogavam-me piedade.
A irmã estudou, pois está claro, doutorou-se, arranjou o seu “mais que tudo”, está grávida, trabalha e vive no estrangeiro. É feliz, ou pelo menos parece sê-lo. Enquanto que a nossa Joana, naquela planície seca e parada, começou a fumar, tornou-se uma compradora compulsiva, transformou-se numa falsa beata e ultimamente deu-lhe para furtar pequenos objectos: canetas da vizinha, clips da papelaria, pacotes de açúcar do café, brinquedos no jardim infantil…
Preocupada, a Joana consultou um livro sobre estes estranhos impulsos para subtrair coisas de valor irrelevante e descobriu um palavrão: cleptomania. Descobriu também que está associada a perturbações psíquicas.
E foi por causa disto que me falou. Da estranha que existe dentro dela.
Não sabia o que lhe dizer: se negar que existia uma outra; ir ao médico; dar uma volta para se esquecer. Não me lembrei de nada! E quando sucumbia à minha aflição, ripostei: “Tens que te libertar, estás presa àquela conversa!” E ela, com um ar de quem já sabia, perguntou: “Para ir aonde?”