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pólo sul

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Seg | 30.08.21

[136] A morte de Quincas Berro Dágua

polosul

Em rigor, o título do livro é o seguinte: "A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua". E não, não há lapso algum no texto transcrito.

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Resumidamente, é uma história sobre o que se faz, diz e ficciona durante as exéquias de um homem que um dia abandonou a família para se tornar um boémio, e que diz à esposa, Otacília, e à filha, Vanda, que são umas jararacas. (p. 35)

Quincas, de seu nome, amantiza-se com outra mulher e passa a ter quatro diletos companheiros de pagode, bebedeiras e patuscadas. E um desses amigos diz, a dado passo, que a "morte de Quincas parecia-lhe uma amputação, como se lhe houvessem roubado um braço, uma perna, como se lhe tivessem arrancado um olho. Aquele olho do coração do qual falava a mãe-de-santo Senhora, dona de toda a sabedoria" (p. 44). Coisa que a demais família nunca sentiu.

Seg | 30.08.21

[135] Facas, de Valério Romão

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Sim, confesso-me um admirador da escrita de Valério Romão. É verdade que gosto de todos os escritores com um pendor filosófico, que não tem de emergir só porque sim ou por vaidade, mas com uma intencionalidade literária, como tendo mesmo que ser assim, se não seria outra coisa qualquer e não era tão bom. E Valério Romão faz isso, o discorrer da erudição é acertado e tem pleno cabimento na história. David Lodge tem páginas e páginas nos seus romances onde martela o seu saber e bom gosto literário em momentos que passariam bem sem esses arroubos de erudito.

Era para começar por falar sobre o livro Facas, de Valério Romão, que me traz aqui, e desemboco noutra coisa, e que até vem a despropósito do conjunto de contos que se encontra neste livro editado pela Companhia das Ilhas, cuja introdução começa de forma rebuscada, "Facas é um livro que assume uma centralidade temática contrastante com a liberdade formal com a qual exprime, em mutações de forma e de tom ao longo dos contos que o compõem, as diversas declinações do objecto que empresta o título ao livro" - cruzes canhoto! - e que até pode ser um repelente de leitores ocasionais. No entanto, nesse site, o excerto transcrito faz-lhe justiça e, sobretudo, a nota de leitura de José Riço Direitinho é certeira e faz jus ao autor, e que se pode ler aqui.

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O livro contém 3 contos, sendo indiferente a ordem da leitura, embora se pudesse dizer que o primeiro conto é tão inigualável, que dos seguintes apenas se pode afirmar que são bons e logo de seguida salientar que o primeiro, "de facto, realmente, sem dúvida..."

O primeiro conto é sobre um homem amputado, veterano de guerra, impotente, cuja mulher lhe é descaradamente infiel. Esse homem tem um filho, a quem ama incondicionalmente, mas um dia ele cansa-se e diz ao pai que "já é altura de teres a tua vida, de viveres a tua vida, de eu viver a minha vida sem ti." (p. 14).

Ao que o pai responde "Mas, sem ti, eu não tenho vida. (...) Cravo a estaca da minha existência em ti, tudo faço em função de ti, até me esquecer de que existo, de que preciso de comer e de dormir".

Este conto é sobre as insuficiências do amor paternal e da sua incapacidade em educar crianças e torná-las pessoas sãs. É um murro no estômago.

Seg | 23.08.21

[134] Caronte à Espera

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Já não sei onde nem quando nem quem leu uns parágrafos do livro de contos de Cláudia Andrade, Quartos de Final e Outras Histórias, e que me levaram a ler esse conto e os demais que se encontram nesse livro. Chegada a vez de ler o seu primeiro romance, Caronte à Espera, não resisto à tentação de dizer que alguns dos temas dos contos são repescados e abordados no romance.

O melhor cartão de apresentação do livro e da autora foi por ela apresentado num vídeo publicado no You Tube, em junho de 2020, que pode ver aqui.

O blogue Antologia do Esquecimento tem uma leitura interessante do romance e citações que, confesso, me escaparam, mas que merecem ser lidas, sendo que nenhuma delas coincide com as que retive.

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Há dois ou três momentos chave do romance - quando Artur se apercebe de uma cara numa fotografia de grupo do seu casamento que não tinha reparado antes; o encontro com Ivan, uma espécie de massagista psicoterapeuta e guia espiritual, lembrando, porventura a despropósito, um romance de V.S. Naipaul, The Mystic Masseur.

"Calcando em pontos especifícos vamos admoestar um par de rins negligentes, animar uma porção melancólica do intestino, serenar uma têmpora dolorida mandando calar o ribombar da artéria que a atormenta." (p. 53-54)

E o terceiro momento decisivo? Há que procurar no livro.

Apesar da escrita densificada e algo rebuscada, a desenvoltura, o ritmo e, dir-se-ia,  a musicalidade  das frases conferem ao texto uma leveza erudita, como se bastasse ir lendo para não perder o fio à meada das peripécias que vai desfiando. Desengane-se quem pensar que é um livro de praia, embora seja discutível e dependa da pessoa e do local da praia onde se lê, mas é uma obra que requer atenção, empatia e disponibilidade. Satisfeitas estas condições, é seguir com prazer o texto, como se olhássemos o mar além e o que há dentro de cada um de nós.

Uma dica para se ficar a conhecer melhor os personagens, recorrendo ao lugar-comum, que tem o defeito de ser impreciso e a virtude de ser fiável, diz-me o que lêem e dir-te-ei quem são: "Ivan tapava o sol com o seu Margarita e o Mestre, e Artur, de borco, sorrindo às crianças louras que apanhavam conchinhas, folheava A Morte em Veneza" (p. 80).

 

 

 

Ter | 17.08.21

[133] A máquina do tempo, H.G. Wells

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A Máquina do Tempo foi a primeira obra publicada por H.G. Wells, em 1895.

Li a versão traduzida para português (Ricardo Saló), sob a chancela do Círculo de Leitores, edição de junho de 1990, cuja capa dura é um hino ao mau gosto, só explicável por uma crise de inspiração do ilustrador ou de quem lhe ordenou fazer aquela capa. Aproveitaram uma cena da adaptação cinematográfica (1960) do realizador George Pal, tendo como protagonistas Rod Taylor e Yvette Mimieux, um duo que lembra o Ken e a Barbie a contracenarem num cenário abonecado dos anos 60.

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Hoje em dia, passadas muitas décadas de livros, televisão e cinema sobre ficção científica, é difícil imaginar alguém a ler este livro que não seja apenas pelo seu interesse histórico, sendo considerado por muitos a obra precursora ou, pelo menos, uma das pioneiras, da ficção científica, e logo sobre um tema recorrente da ficção científica – o Tempo.

O livro, ou melhor, a história, desenrola-se entre a viragem do século XIX para o XX, e um salto, na tal máquina, para o ano de 802701. Isso mesmo, para o ano oitocentos e dois mil e setecentos e um!

Não há motivos para ansiedades, sejam elas quais forem, pois o narrador assegura que, “Tanto no vestuário como em todas as diferenças de textura e atitude que atualmente distinguem os sexos, aqueles indivíduos do futuro eram iguais.” (p. 48) No entanto, a paz e a segurança que esses novos tempos trouxeram, além da arte e do erotismo, engendraram a “indolência e o declínio.” (p. 54) Por conseguinte, o que já se sabia em 1900 observou-se no ano de 802701, sendo que nesse adiantadíssimo ano também já ocorria o fenómeno linguístico que já se observa hoje em dia, embora parcialmente, o “idioma era notavelmente simples – composto quase inteiramente de substantivos e verbos concretos. Dava a impressão de que havia poucos, ou mesmo nenhum, termos abstratos, ou raro recurso às formas metafóricas. As frases revelavam-se usualmente simples e de duas palavras” (p. 63).

Apesar da extensão reduzida do romance (ou novela, não sendo este o local ou momento para escolher), H.G. Wells tem espaço para expor uma tese sobre a dialética do processo histórico da luta de classes na p. 77.

O livro publicado pelo Círculo de Leitores vem com um bónus – um pequeno conto de Wells intitulado "O Homem que podia fazer milagres". Dava para outro romance!

Ter | 17.08.21

[132] Cair para dentro

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A sinopse da WOOK ao último romance de Valério Romão não lhe faz justiça, por ser simplista e quase  desincentivar à leitura, quando até o título - Cair para dentro - motivaria qualquer leitor apático a ler as primeiras páginas. 

Como já li dois livros anteriores do mesmo autor - Autismo e O da Joana - sabia ao que ia e li este terceiro com mais expetativa do que curiosidade. Diria que não há uma página em que V. Romão não exija do leitor que olhe para si e medite sobre a estrutura do seu pensar e do que é o conhecimento sobre a natureza e a essência das relações humanas.
 

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Dirão que quase todos os livros são assim, especialmente o de V. Romão. E é verdade.

A história é simples, o que lhe acrescenta valor e arte é o estilo da narrativa, o desenvolvimento da trama sobre duas mulheres, Virgínia e Eugénia, mãe e filha, e os limites e dilemas morais de uma relação de poder, primeiro da filha pela mãe, a ponto desta dizer da filha que "vive nessa fantasia de construir uma carreira entre estantes, lendo o que toda a gente já leu há mais de dois mil anos, chovendo sobre o molhado, não produzindo uma única linha que faça avançar este país, o mundo já tem pensamento a mais, Eugénia, o mundo precisa de pessoas capazes de decidir e agir, de pessoas politicamente engajadas” (p. 104).

Mais tarde, essa relação de domínio inverte-se.

E na hora da morte da mãe, “somos todos Caio, meus senhores, e somos o Ivan Ilitch descobrindo-se Caio, e estamos a morrer, e por hoje é tudo.” (p. 135)

Ter | 10.08.21

[131] Relato de um náufrago

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Este livro, ou melhor, esta coletânea de artigos publicados no diário El Espectador de Bogotá, em 1955, da autoria do então jornalista Gabriel García Márquez, lê-se sofregamente. Foi difícil parar de ler a narrativa na primeira pessoa e simultaneamente perguntar-me o que faria se estivesse no lugar de Luis Alejandro Velasco, o náufrago, que chegou a dar-se por derrotado:

"Em todos os momentos tentei defender-me. Sempre encontrei um recurso para sobreviver, um ponto de apoio, por insignificante que fosse, para continuar à espera. Mas ao sexto dia já não esperava nada. Eu era um morto na balsa." (p. 66-67)

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Aqui não há problema contar o fim da história, porquanto o título do livro assinala de imediato que alguém sobreviveu a um naufrágio. Pode-se, por isso, fazer eco da surpresa dele:

"Nunca julguei que um homem se convertesse num herói por estar dez dias numa balsa, suportando a fome e a sede. Eu não podia fazer outra coisa. (...) Eu não fiz qualquer esforço para ser herói. Todos os meus esforços foram para me salvar." (p. 117).

Na último parágrafo do livro, o náfrago ou Garcia Márquez ou seja lá quem for, remata as crónicas da seguinte forma: "Algumas pessoas dizem-me que esta história é uma invenção fantástica. Eu pergunto-lhes: então o que é que eu fiz durante os meus dez dias no mar?"

Ter | 10.08.21

[130] Porto-Sudão, de Olivier Rolin

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A morte de um amigo, de nome A., leva o protagonista a regressar a Paris. E a partir daqui, desenrola-se uma peregrinação pela memória, onde se sabe que "o sofrimento não era um jantar de gala, nem poesia elegíaca, que era sangue, suor e merda" (p. 47). Não obstante, diz o sobrevivo, "Tentei cumprir o que senti como um dever para com A.: dar ao seu amor morto, mas não enterrado, uma sepultura de palavras." (p. 85)

O amigo suicidou-se, após evidenciar vários sinais de degração, entre os quais, "um modo de deixar os olhos errar no vazio, ou então, ao contrário, de olhar tão fixamente como alguém que não sai senão por momentos de um sonho esgotante e duvida da realidade que encontra; e ainda um modo de estar ligeiramente curvado, como que dobrado por uma pancada, fechado sobre uma dor que nunca o abandonou" (p. 47).

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Este livro não é para fracos: "se é uma fraqueza não crer em si, é outra, e mais ridícula ainda, de si nunca duvidar." (p. 52). 

Se tiver pressa e quiser saber qual o âmago da história, avance até ao capítulo 10 (pp 67-74). Se o ler de fio a pavio, quer tenha gostado quer não, repita a leitura deste capítulo, é uma oportunidade de o reavaliar ou de gostar ainda mais.

Ter | 10.08.21

[129] A invenção de Adolfo Bioy Casares

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A invenção de Morel, de Bioy Casares, conta com um prefácio de valor incalculável, quer pelo autor - Jorge Luís Borges - quer pelo seu teor, especialmente do último parágrafo:  "Discuti com o autor os pormenores do enredo, reli-o; não me parece uma imprecisão ou hipérbole classificá-lo de perfeito."

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Teria aquela frase de Borges algo que ver com o entusiamo de Morel,  quando admite o impensável, como seja a "influência do futuro sobre o passado" (p. 56)?

O que dizer de um personagem, também ele narrador, que diz "Nada esperar da vida, para nada arriscar; dar-me por morto para não morrer"? (p. 36) e mais à frente, admitindo fraquezas da sua memória, afirma, candidamente: "Temi que esta descoberta fosse apenas efeito de alguma fraqueza das minhas recordações, ou da comparação de uma cena real com uma simplificação feita de esquecimento." (p. 57) Lapidar!

Mas o melhor, a propósito dos jogos entre o passado e o futuro, entre a essência e a contigência, entre o vento e água, o melhor, dizia, pode estar aqui, não para todas, mas certamente para algumas pessoas: "Não me matarei para já. Habituei-me a ver as minhas teorias mais lúcidas desfazerem-se no dia seguinte, ficarem como provas de uma assombrosa combinação de inaptidão e entusiasmo (ou desespero). Talvez a minha ideia, uma vez passada a escrito, perca a sua força." (p. 129).

 

Seg | 09.08.21

[128] A estrela de Clarice Lispector

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Macabéa, a protagonista do livro, merecia mais de Olímpico, o homem por quem se apaixonou. Aqui não há uma história de amor, há, sobretudo, uma história de desencontro. Parece gasto e repisado, eu sei. Mas é o que é.

Se já tentou ler outros livros de Clarice Lispector e não conseguiu, esta última obra, publicada pouco antes de morrer, é um bom ponto de partida. Há quem desista de ler este livro porque fica confuso com a perspetiva do narrador e as suas intromissões, dir-se-iam despropositadas, na história. Além de abundarem as frases e ideias herméticas a que Clarice nos habituou e que podem intimidar o leitor incauto.

Também penei um pouco durante a leitura inicial, os nossos santos não casam ou seja lá o que for. Até que cheguei à p. 28, onde se diz de Macabéa: "Ela pensava que a pessoa era obrigada a ser feliz. Então era." Como se as coisas fossem simplesmente assim: "aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender." (p. 29) Por aqui já se tem um vislumbre do que ela foi, é e viria a acontecer. 

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Macabéa (que nome tão bonito!) é desconcertante, pois "ficava olhando as vitrines faiscantes de jóias e roupas acetinadas - só para se mortificar um pouco. É que ela sentia falta de se encontrar consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro." (p. 35)

Se você, leitor casual e que chega de novo a Clarice, ainda não se convenceu a lê-la, não sei que mais (trans)escrever para o cativar. Garanto que vai gostar de Macabéa e que vai querer ser amigo, solidário e protetor dela, especialmente quando ouvir o que Olímpico lhe disse na hora de terminar a relação entre eles: "Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. Me desculpe se eu lhe ofendi, mas sou sincero. Você está ofendida?" (p. 60) 

Quando Clarice, dissimulada no narrador, a meses de morrer e saber que ia morrer, escreveu isto, porventura em jeito de testamento, "Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte" (p. 70), sobram motivos para a ler devotamente.

 

Para uma boa introdução ao livro, ilustrando que não estamos sozinhos a tentar ler mais e melhor, veja aqui: https://www.youtube.com/watch?v=xi1fwf1wB1Q&ab_channel=LerAntesdeMorrer

O filme completo do livro está no You Tube: https://www.youtube.com/watch?v=MBxAMJvSip0&ab_channel=FilosofandoCi%C3%AAnciashumanasemdebate