À terceira foi de vez. Era, sempre me pareceu, uma obra de difícil leitura. Agora nem tanto, nem tão pouco.
Ia quase a dizer que cresci a ouvir dizer que este é que era o livro que deveria ler antes de avançar para os romances e novelas do realismo mágico sul-americano, mas não me parece. Se tivesse sido o primeiro, certamente ficaria desmotivado para ler o que veio a seguir.
Juan Preciado, após a morte da mãe, vai a Comala procurar o pai, Pedro Páramo.
Da mãe diz que, no dia do funeral dela, "Ninguém veio vê-la. Foi melhor assim. A morte não se partilha como se de um bem se tratasse. Niguém anda à procura de tristezas." (p. 73).
Na nota prévia à obra póstuma de Eça de Queiroz, "Alves & C.ª e Outras Ficções" (Livros do Brasil, s/ data), João Palma-Ferreira resume, singela e rigorosamente, do que trata a novela: "história «sem caprichos» de um negociante de comissões com o Ultramar" (p. 13) ou uma "caricatura (talvez superficial) de uma sólida família de uma burguesia lisboeta" (p. 15), que melhor seria se fosse intitulada Godofredo, Machado & Ludovina.
Godofredo é casado com Ludovina (Lulu) e sócio de Machado. Um dia descobre que o sócio o trai com a sua esposa; expulsa a adúltera de casa e desafia o sócio para um duelo ou... um suicídio! Mas logo "Godofredo ficou só, com as ruínas da sua grande ideia, humilhado, confuso, encavacado, com as fontes a latejar, e sem saber o que havia de fazer." (p. 100)
Mas eis que os amigos de ambas as partes intervêm e tudo termina sem derramamento de sangue ou violências. A uma paz podre sucede-se uma reconciliação e a retoma da estima e amizade mútuas. Afinal, toda a gente queria de volta a mansidão dos dias, a felicidade contemplativa e a prosperidade.
Sobre o secretismo dos pensamentos, ou melhor, sobre a verdade do que pensamos, David Lodge adianta o seguinte: "Nunca sabemos ao certo o que outra pessoa está realmente a pensar. Mesmo que decida contar-nos, nunca podemos saber se está a dizer-nos a verdade, ou a verdade toda." (p. 52)
Portanto, já avisados, ficamos a saber que se pode desvendar o que um cônjuge pensa, real e inteiramente, do outro, analisando a linguagem que adotam. Por exemplo: "Ela trata-o por «Messenger» (...), num tom meio deferente, meio irónico. De certa forma, parece servir o conluio de o colocar acima dos comuns mortais que têm os seus eus privados com o primeiro nome e as suas personae profissionais com apelidos; mas, ao mesmo tempo, o incongruente formalismo de uma mulher tratar o marido pelo apelido parece escarnecer das suas pretensões e interpor uma fria distância entre eles." (p. 33)
E, confirma-se, estas coisas desembocam sempre em sexo: "aquilo que distingue o sexo humano do sexo animal é precisamente o sermos capazes de pensar nele, é por isso que o gozamos, e gozamos o gozo uns dos outros" (p. 92).
E depois, mais para o fim, depois de algumas peripécias de que Lodge é useiro e vezeiro, num dos seus momentos ensaísticos, escreve: "O acto sexual é um acto tão comum, tão banal, infinitamente repetido por milhões de pessoas todos os dias [...]; no entanto, cada pessoa tem a sua forma individual de se envolver nele, de o desempenhar e de se desprender dele, uma forma tão única e inequívoca como uma assinatura ou uma impressão digital. Isso assenta em várias coisas - ritmo e sequência, por exemplo, assim como o tipo de preliminares ou posição preferida. Quando se trata de uma relação estável, começa-se a conhecer o padrão de estímulos e reacções do parceiro, e ele o nosso. Não que todos os actos sexuais sejam exactamente iguais; mas existe uma espécie de repertório que se vai traçando em conjunto, elementos que se combinam de formas diferentes em diferentes ocasiões. [...] ... uma espécie de linguagem que os amantes aprendem" (p. 210-211).
Nada de novo é certo, mas sempre satisfatório ver apostilhado em livro.
Um coronel idoso, a filha que casou com um homem que não conhecia, e o filha dela, vão velar um morto, o "doutor", um homem que a povoação odiava, mas por quem o coronel se sentia devedor. O livro - dizem que é uma novela, pois seja - desenrola-se em monólogos do pai, da filha e do neto durante o velório. O "doutor" não tem a palavra, jaz morto, repescado à vida nos monólogos, sem direito a contraditório, afinal ele personifica o diabo.
Os habitantes da povoação não gostavam dele porque, em momento de emergência, o "doutor", que também era médico, recusou tratar os feridos. Não mais houve comiseração por ele. Não o lincharam porque o padre não o permitiu. Subsistiu a pena capital para o pecado máximo - um enterro sem flores, sem pêsames e sem niguém.
No seu primeiro livro publicado (1955), Gabriel García Márquez apresenta-nos Macondo, refere-se ao coronel Aureliano Buendía, prende-nos a uma narrativa onde quem fala são personagens menores e de quem se fala é que é o principal personagem.
Mas afinal quem era o "doutor"? É por causa desta pergunta que continuamos a ler, expectantes, e vamos sabendo do coronel, da filha e do neto.
Perante a recusa do alcaide em emitir a certidão de óbito, o coronel pensa: "Ao ouvi-lo, percebo que não está tão imbecilizado pela aguardente como pela covardia." (p. 30).
E depois, ao confrontar a esposa sobre quem era o visitante, ela respondeu ao coronel: "estou segura de que não é a pessoa com quem se parece, mas a própria pessoa com quem se parece." (p. 64).
Quando o coronel diz que o "doutor" é ateu, este nega: "O que acontece é que me perturba pensar que Deus existe como pensar que não existe. Então prefiro não pensar nisso." (p. 118).
Durante a narrativa sente-se que o "doutor" era um homem sofrido, atormentado, padecia, como se diz hoje, de stress pós-traumático. Isso explica porque, "Ao entrar pelo fundo. deparam-se-nos os escombros de um homem abandonado na rede. Nada deste mundo deve ser mais tremendo do que os escombros de um homem." (p. 142).
Dulce Maria Cardodo irrompeu na minha vida com O Retorno, livro que evocou e dessacralizou um período infantil e precoce da minha vida. Eles vinham de longe, os retornados, essas pessoas que desencadeavam um inexplicável desdém e censura por parte dos indígenas lusitanos. Apesar de ser um miúdo, já entendia os desabafos exasperados sobre os retornados, mas não compreendia de todo a origem de tanta raiva. Porquê desvalorizar, injuriar e até difamar pessoas que fugiram das suas próprias casas? O que é que a maioria das pessoas à minha volta tinham observado e concluído que me tinha escapado? Talvez tenha sido esta uma das causas para ser tão inquiridor e esgotar a paciência da minha mãe.
Bom, mas o que trago até aqui é este livro:
Segundo a Dulce - espero que não olhem para este desaforo de a tratar por Dulce em vez de me referir a ela como A Dulce -, a este volume (Parte I - A vida normal) seguir-se-ia um outro e até falou num terceiro volume. Seja como for, se houver meio volume já vale a pena procurá-lo. A história de Eliete, e cabe dizê-lo antes de me distrair com outras literatices, nem sequer é muito interessante. Mas a maneira de a contar, a arte e o engenho (mil desculpas pela expressão gasta) da narrativa, a profundidade psicológica, emocional e racional da protagonista é tão rica e estimulante que, perguntar-se-ia, para onde nos vais levar, Dulce?
Num solilóquio de Eliete sobre uma das filhas: "A Inês representava melhor a fingir sofrimento ou a fingir felicidade? Preferia que fosse a fingir sofrimento e que a minha menina fosse sempre feliz." (p. 224)
E sobre as palavras, pedra angular de qualquer livro que passe pelas minhas mãos, escreve esta reminiscência que também foi a minha: "as heroínas das fotonovelas da mamã tinham-me ensinado que quanto mais se insistia numa palavra mais o significado dessa palavra se tornava o mesmo para todos os que a pensavam, ouviam e liam, que quanto mais importante fosse o que queríamos dizer menos substituíveis eram as palavras." (p. 273).