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pólo sul

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Qua | 28.11.07

[59] Grito

polosul

 

 
Quando um moribundo chama por alguém, o que significa? Não acrescenta outras palavras, apenas exclama o nome, mas do tom desprende-se um apelo. Significa que a mera presença dessa pessoa completa uma série, conclui um puzzle, esclarece um mistério?
 
O X. gritou por mim toda a noite. Quer-te aqui, disseram.
Para quê? pergunto-me. Eu não salvo, não dou extrema-unção, não alivio dores. Então para quê?
 
Já lá vai o tempo em que uma pessoa agonizante representava um vislumbre da morte. Sentia alguma curiosidade, inquestionavelmente mórbida, em relação ao espectáculo vivo da acção da morte. Esse deslumbramento já lá vai porque o sofrimento desfez dúvidas sobre a crueza da morte.
 
Hoje, desejo que a dor seja um pequeno artigo de jornal. Com princípio, meio e fim. Com o tempo indispensável para nos inteirarmos dos factos e despedirmos dos próximos. Vinha a dor e logo sobrevinha o fim. Mas não é possível.
 
Ele gritou o meu nome. Aflito, umas vezes, reivindicativo, outras, mas sempre bondoso. E é incapaz de explicar porque chama por mim...
Será este um dos mistérios da morte?
Dom | 18.11.07

[58] slow dying old man

polosul

 

O X. está a morrer. Não há eufemismo possível para disfarçar essa realidade. Morre-se.

Com dignidade, acompanhado da família e amigos, mas morre.

 

Eu sou o pior dos amigos, pois sou daqueles que não suporta "o nada poder fazer".

Hoje peguei-lhe na mão e senti-a longe. O meu amigo X. está apagar-se e eu sem poder ajudar. Dão-nos a vida com uma mão e não permitem que a possamos distribuir com a outra.

Hoje pensei muito em Deus, esforçando-me por pensar que fosse alguém do prédio em frente a quem fizesse uns sinais de luzes e que percebesse e viesse ajudar-me a salvar o  X.. Mas Ele não respondeu.

Deus tem destas coisas. Não liga aos velhos. Ou distrai-se.

Se Ele realmente existir, e eu tenho muita esperança nisso, um dia terei uma conversa com Ele sobre as prioridades e escolhas de quem e quando deve morrer. Não tenho visto muita equidade nos critérios aplicados ultimamente, quer dizer, desde que me lembro; creio mesmo que Ele, se existe, na sua omnisciência tem alguns lapsos. Porventura pequenos para Ele, mas enormes para nós. Levar-nos o X. é um deles.

Eu sei que o X. é velho e gasto e usado, mas quem não o está também!?

Reconheço que ele já não é um elemento produtivo da sociedade, mas isso depende de quem vê e avalia.

E já agora, que tal avaliarmos Deus sobre as horas e locais onde nos recolhe!?

Eu queria que o X. ficasse mais tempo aqui. Com algumas condições: que recuperasse a consciência, os movimentos e retomasse aquele olhar iluminado. De outro modo, não.

E este é outro problema também muito mal amanhado por Deus: porquê deixar-nos sofrer aos pinguinhos? porquê deixar-nos decrépitos e sem dignidade, por vezes até deixando de ser possível mijar de pé!?

 

Hoje, eu queria apenas que o tempo andasse para trás e voltasse a ser criança e o X. me desse a mão para irmos comer um prato de caracóis e beber uma gasosa.

 

Obrigado X.