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pólo sul

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Ter | 26.09.06

[38] Tarde de mais

polosul

Acordou e começou a pensar febrilmente, como só acontecia quando as preocupações o atormentavam, tal como agora, depois dela lhe ter confessado, entre lençóis, de que ele é um menino embirrento.
Acordou a pensar na acusação de que era ele quem lançava a semente do desencanto sobre um amor que deveria prevalecer sobre todas estas coisas.
Culpa-a por lhe apontar os defeitos; acusa-a de lhe dificultar a vida; censura-a por querer que ele pense nos seus comportamentos; acha-a insuportável porque ela começou a reparar que ele é problemático.
 
Pouco depois, alguém disse que já não tinha paciência. Ele ouviu-a. Não tinha paciência. E ele a ouvir. De seguida disse que se sentia sozinha. E ele à escuta, de nuca arrepiada, a procurar surpreender uma decisão definitiva e cerce.
 
E a criança que havia nele reapareceu, chocada e aterrorizada, arrependida dos milhentos esquecimentos, desleixos, descuidos e distracções, nos incontáveis processos de intenção, juízos precipitados, nas consequências de ser perdulário, de não atender, de não retribuir, de não ser sensível.
 
Mas já era tarde.
Sex | 22.09.06

[37] A promessa

polosul

Nós prometemos.

Enlaçámo-nos um no outro e prometemos que nada nem ninguém se atravessaria no nosso caminho. Naquele tempo sentimos que era tudo tão verdade, tão definitivamente verdadeiro. Como quando olhamos esta montanha e ela, perene e eterna, garante que sempre estará por ali.

A nossa promessa era uma colina. Não haveria luxúria nem baixeza que nos tentasse e a derrubasse. Quem diz colina, diz cordilheira, Sol, mar e sei lá que mais.

Tudo, mas mesmo tudo, era eterno. Mas depois os sentimentos foram-se e o tempo foi-nos surripiando palavras. Primeiro foi "amor", depois foram os diminutivos, os "inhos", os "necas"; deixámos de nos tocar e de cheirar. Quando demos por nós a dizermos que tínhamos que conversar e não conversávamos; quando finalmente reparámos que o "se faz favor" tinha desaparecido; quando comprámos mais um computador para estarmos no messenger e conversarmos com os nossos amigos depois de deitarmos as crianças; quando deixámos de conversar estupidamente na cama e passámos a falar de coisas sérias e repletas de recriminações; quando sentimos que o nosso sexo era um misto de dever e de alívio...

Quando, enfim, deixei de te ouvir e apenas pensar que tinha de acabar, sair dali e desaparecer, concluí, tarde, que uma promessa só vale no momento em que é feita.

Ter | 12.09.06

[36] Para que serve ler

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«como é possível governar-se para viver sem a leitura? Deixar de escrever pode ser a loucura, o caos, o sofrimento; mas deixar de ler é a morte instantânea. Um mundo sem livros é um mundo sem atmosfera, como Marte. Um lugar impossível, inabitável. (...) Um leitor tem a vida muito mais longa do que as outras pessoas porque não morre até acabar o livro que está a ler. (...) É que a morte também é leitora, por isso aconselho a que andem sempre com um livro na mão porque, quando a morte chega e vê o livro, espreita para ver o que estamos a ler, tal como eu faço no autocarro, e distrai-se.»

 

Rosa Montero, “A louca da casa”, p.126.

Ter | 12.09.06

[35] Elas também (d)escrevem

polosul

«O beijo durou todo o filme, mas não nos beijámos exclusivamente na boca. Ele foi descendo com uma sabida lentidão pelo meu pescoço, lambeu-me desde o queixo até aos mamilos, onde esteve alguns minutos num gozo interminável. Pouco depois, ainda mais ligeiro, avançou desde os seios até às costelas e daí ao umbigo, e com a ponta da língua fez alguns estragos no meu ventre, que parecia agitar-se como numa dança persa. (...) Depois, com os dedos compridos, apartou os pêlos e o meu clítoris reluziu assim vermelho e rijo. E foi aí que estampou muitos beijos que o consagraram para a eternidade como o nobel do cunilinguismo. (...) Quando ele se despiu, o seu corpo grego deixou-me pasmada, boquiaberta, toda babada. As costas ligeiramente mais largas do que as ancas, puro lombinho fumado (...) Umas ancas estreitas, nádegas perfeitas e lisas, a penugem a surgir das extremidades e depois os músculos. Uns músculos salientes, musculosos, pernas tensas, tornozelos grossos, pés elegantíssimos e muito bem proporcionados (...) O pescoço na proporção exacta, nem muito grosso, nem muito largo. (...) Olho-o como uma estranha obra de arte por fora e por dentro, porque é muito terno, paciente e calmo.»

 

 

 

Zoé Valdés, “O nada quotidiano”, p. 128-130

Qui | 07.09.06

[34] Epílogo

polosul

Caí em mim. Para ela apenas contava a escrita e as emoções que suscitava. Estava-se nas tintas para o resto.

 

Mandei-lhe uma breve nota, a terminar com tudo:

 

«Se nos apaixonamos com tanta rapidez, talvez seja porque a vontade de amar precede o objecto do amor - a necessidade inventa a sua solução.»

 

“Ensaios sobre o amor”, Alain de Botton, p. 24 

 

Qua | 06.09.06

[33] A ler nos apaixonamos (III)

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E ela respondeu com o seguinte:

«Caro Senhor, lamento só agora responder à sua missiva. E peço-lhe que releve. Pois foi por uma causa honesta. Fico envergonhada só de o imaginar a escrever todas aquelas coisas! Olho para os meus familiares, amigos, inimigos, fãs e críticos e confesso que jamais me ocorreu ser olhada com essa profundidade. Você escreveu aquilo que eu sou! Apaixonei-me pela sua carta. Li, reli, porventura tresli, rendida à evidência.

 Você escreveu o que sempre sonhei.

 

Sempre desejei, sabe Deus com que intensidade!, seduzir quem me lê! Sempre sonhei secretamente ser a causa dos ciúmes de todos os maridos e de todas mulheres; desde que me lembro, sempre quis arrebatar quem passava os olhos pelas páginas que um dia escreveria. Sempre pensei, embora nunca o admitisse de viva voz, que seria a causa e o remédio de todos os males. E finalmente, suprema glória e prazer, queria que me amassem. É uma palermice, mas é verdade.

Acabei por admitir duas coisas: que não posso querer sempre mais, sob pena de nunca ter o suficiente; e que nunca conseguirei escrever de forma a conquistar tudo e todos.

 

E assim descortinei o que penso ser o princípio de uma ideia que procurarei verter no meu próximo livro — e se o “amor” for uma mera palavra que exprime o indescritível?; e se o amor for um mero apeadeiro numa linha contínua de afectos? E se for tudo uma invenção?»