Avistei-a ao longe numa alameda outonal a passear um labrador de expressão ansiosa e terna. Eu regressava do supermercado. Quando me cruzei com ela, já tinha uma bolacha na mão para oferecer ao cão. Era a minha oportunidade! O cão aproximou-se e não se armou em esquisito como aqueles que cheiram, dão uma volta, cheiram outra vez e só então se decidem. Foi lesto e eficaz. Dei-lhe a segunda bolacha e fitei-a, firme e seguro. Ela devolveu-me uma expressão entre a timidez e a surpresa. Caiu sobre nós um silêncio hesitante, em viagem entre a simpatia e o agradecimento. E à medida que o silêncio se alongava, tornou-se intenso. Eu olhava e ela correspondia por detrás de uns óculos escuros. Não trocámos uma palavra, mas permutámos uns sorrisos.
Aquele momento foi demasiado poderoso para o largar na porta de casa. Ficou-se-me colado na cabeça e adormeci e acordei com ele nas semanas seguintes.
Decidi-me a enviar-lhe um e-mail. Contactei a editora e eles indicaram-me uma caixa de correio electrónico dedicada aos fans. Mas não me importei. Desde aquela tarde passei a ter um estatuto diferente. Primus inter pares! Apesar de me sentir impelido a escrever uma manta de tiradas líricas, controlei a emoção, como um bom poeta faria, e redigi um texto emocionado, embora ponderado, sobre a poesia dela.
Apaixonei-me. Primeiro, pelo livros que escreveu. Depois pela profundidade do olhar dela quando assisti à sessão de autógrafos na Feira do Livro. Um dia, enquanto esperava pela minha vez no dentista, calhou ler uma entrevista dela a um dos suplementos de um jornal diário e soube de pormenores de incalculável valor para qualquer pretendente. Eram coisas íntimas, sentidas, sinceras. Fiquei mais apaixonado, quer dizer, alargou-se o âmbito da minha paixão: já não era puramente livresca, resultando dos sentimentos que me suscitava a leitura dos poemas dela, era algo mais comum, tangível, permitindo fabricar umas quantas imagens de sonho e futuro. Via-me a passear com ela, a cozinharmos juntos, a irmos à praia, a beber o café e a lermos juntos o jornal aos Domingos de manhã.
“Amo-te. És a mulher da minha vida”, dizia e repetia ele. “Amo-te. És a mulher da minha vida”.
Um dia ela cansou-se e ripostou: “Isso não chega.”
E ele repetiu, insistiu, teimou, chorou, lamentou e pediu mais uma oportunidade. Só mais uma.
E ela concedeu, esperou e desesperou.
Ela: “Vamos acabar com isto.”
E ele: “Amo-te. És a mulher da minha vida.”
E ela, cabisbaixa: “Quero acabar com isto.”
E ele, protestando: “Mas eu amo-te! Só tu me fazes feliz!”
E ela, pensou, pensou, encravada entre um marido desleixado e dois filhos ainda pequenos, e foi ficando, ficando, até se esquecer da razão porque casou e viveu durante uma vida inteira com aquele homem.
Quando nasci, pensei eu ligeiramente mais tarde, foi o princípio do fim da História. O Mundo nunca mais seria igual. Quer dizer, a infância pregou-me partidas que me levaram a concluir que o caminho era árduo, mas acabaria por lá chegar. Porém, a adolescência deu-me certezas inabaláveis sobre a minha infinita importância e quão seria decisivo para o curso da Humanidade. Já adulto, teimosamente, alimentei um sonho que se foi à velocidade de um fósforo.
Hoje nem sei o que dizer… vou vivendo, e apenas me apetece caminhar contigo, de mão dada, a cheirar-te as mãos, a ouvir os teus passos, a brincar com os teus olhos. Hoje estou calado. À tua espera.