A palavra, e depois a ideia, destilam uma tal intensidade que sou incapaz de dizer “amo-te”, ou chamá-la por “ó amor!”; nem sequer me atrevo a dizer carinhosamente “amorzinho”. Os anos iam-se e eu sem o conseguir dizer.
Um dia declarei que me queria separar dela, era a primeira vez que adoptava uma medida tão extrema para um problema tão comezinho. Quer dizer, não queria bem a separação, era mais encenar a minha incapacidade em dizer-lhe aquilo. Mas não resultou. Tudo por causa do olhar suplicante da minha mãe, do ar desorientado das minhas filhas e sobretudo das inevitáveis conjecturas estúpidas da vizinhança que ao virar da primeira esquina, enquanto me apertavam o bacalhau, insistiam: “Mas está mesmo tudo bem consigo?”
Depois desatei a comer, engordei, a barriga, as ancas, as papadas, os braços e até os pés e as mamas incharam de gordura. A princípio tive uma centelha de bom senso e cortei nos doces, mas descontrolei-me e foi o desastre. Tomei consciência de que tinha um ar gelatinoso, que as pessoas olhavam e pensavem "que horror" ou “coitado, está deformado!”
Depois entrei numa fase piegas e chorava onde e quando calhava, não por lembrar-me do meu aspecto desleixado e incapacitado, mas porque continuava a não conseguir dizer à minha mulher “amo-te”. As minhas filhas não percebiam, a minha mãe ralhava-me e eu ficava-me por ali, bloqueado, como uma alforreca.
Um dia pus-me a estudar: a pesquisar nos livros, a descodificar as pinturas, a ouvir música e a observar atentamente a dança. Lia cada vez mais e de tudo, ia às exposições de fotografia, aos ciclos de cinema, assistia a peças de teatro experimental e passava horas infindáveis na Internet. Frequentei chats, troquei mensagens, participei em fóruns gerais e temáticos. Recomecei a psicoterapia, experimentei a psicanálise e acabei num consultório psiquiátrico 60 quilos depois.
Esta noite contemplo-me e pergunto-me, estupefacto: porque é que só hoje, quando ela partiu definitivamente, é que lhe disse que a amo?
«todos os meus actos, todas as minhas palavras, continuam vivos, avançam para além da esquina a que me encosto, vejo-os que partem, deste lugar donde não posso sair, vejo-os, actos e palavras, e não os posso emendar (…) e o pior de tudo talvez nem sejam as palavras ditas e os actos praticados, o pior, porque é irremediável definitivamente, é o gesto que não fiz, a palavra que não disse, aquilo que teria dado sentido ao feito e ao dito.»
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, p. 143-144
Premi as teclas do telefone, ouvi o sinal de chamada por 3 vezes e alguém saudou: “Boa noite”, com uma entoação a dois tempos, como se dissesse “aqui estou eu, o que deseja?” Hesitei, perguntei quem falava, queria ganhar tempo. E ele respondeu, firme e incisivo, sem se identificar: “Diga.”
Avancei, aquela era a minha deixa, declarei que iria suicidar-me e já sabia quando e onde. Fez-se silêncio. “E qual o seu objectivo ao telefonar para aqui?” Não fiquei surpreendido. Sabia que apanharia qualquer um desprevenido e aquela era uma forma das pessoas recuperarem. “Porque não aguento mais.” O silêncio reapareceu e o nervosismo deu lugar à inquietação.
“O que é que posso fazer por si?”, perguntou.
Fiquei apreensivo, e repliquei: “Como!?”
“Se já decidiu e mesmo assim ligou é porque está à espera que lhe diga algo que o prenda à vida. Mas não sei o que lhe dizer.” Senti-me desamparado: “Vocês não têm uma preparação especial para estas coisas?”
Comecei a ficar irritado: raios!, nem sequer me pediu para falar da minha vida, e dizer que os meus pais eram diferentes, mas iguais na frieza e na desumanidade. Não, não me maltratavam fisicamente. Tratavam-me como o ar quente que lhes estragava a comida ou uma janela aberta que lhes trazia os mosquitos. A minha casa era uma arca frigorífica onde sempre procurei surpreender um olhar afectuoso, um sorriso, e nada.
Percebi um suspiro ou bocejo do outro lado da linha. Aquilo era demais! Carreguei nas tintas escuras da minha história: “Não tenho trabalho.”
“Está, portanto desempregado?” perguntou ele. Senti-me recompensado e continuei: que sofria de asma, prisão de ventre e vários problemas de pele; que estava a ser acompanhado por um psiquiatra há mais de 15 anos. Ansiolíticos, anti-depressivos, relaxantes e calmantes, de tudo havia tomado. Ele interpôs: “Que idade tem?” E aqui senti-me uma sequência binária, como se me tivessem tomado como um dado estatístico. Mais outro que se quer matar… Percebem o que quero dizer?
Esta banalização tirou-me do sério: “Para quê, de que lhe serve isso!?” Ele tossiu, pareceu-me que levemente embaraçado, e retorquiu: “É casado?” Aqui amaciei porque senti que voltava a interessar-se por mim e disse logo que não, que elas me achavam, sempre me acharam esquisito, nem sequer tive uma namorada.
Ele mudou o curso da conversa e perguntou se eu tinha dificuldades económicas. Disse-lhe que sim, além de estar desempregado e sem perspectivas de obter novo emprego, não tinha família, nem amigos, lamentei. Nada. Também era por isso que me ia matar. Voltou a cair um silêncio entre nós. Aguardei.
E ele: “Olhe, não sei o que lhe dizer. A sua vida é muito difícil, não sei o que faria no seu lugar! Desempregado, sem família, sem amigos, sem objectivos na vida, para que serve viver!? Eu também me inclinaria para uma solução rápida e definitiva!”
Fiquei indignado, espumei de raiva, insultei-o. Por fim, sempre calmo, ele concluiu: “Eu acho que você ainda tem dúvidas sobre essa decisão, mas não encontro argumentos que o façam mudar de ideias....”
Desliguei o telefone, furioso, e a jurar que haveria de queixar-me disto e mandar para os jornais. E assim fiz. Estranhamente, houve quem gostasse e me pedisse que continuasse a escrever. Depois começaram a pagar-me para escrever mais. E hoje em dia esse é o meu trabalho: escrever sobre mim e sobre estas coisas.