Enquanto a Joana brincava silenciosamente com as bonecas, refugiada atrás daquele maciço sofá, ouviu-os: Pai: “Ela é de outra fibra, de outro sangue!” Mãe: “São iguais!” Pai: “A Carla é melhor!” Mãe: “Chiu! A Joana pode ouvir!”
E desde então a Joana nunca conseguiu ser melhor que a irmã, e quando o era, o pai esforçava-se por lhe chamar pura sorte. O que a Joana pensava, fazia ou desejava era considerado, respectivamente, estúpido, inútil e adiado sine die. E foi assim que a Joana nunca saiu da aldeia, deixou a escola cedo, não casou, não teve filhos e quando nos conhecemos os olhos dela rogavam-me piedade. A irmã estudou, pois está claro, doutorou-se, arranjou o seu “mais que tudo”, está grávida, trabalha e vive no estrangeiro. É feliz, ou pelo menos parece sê-lo. Enquanto que a nossa Joana, naquela planície seca e parada, começou a fumar, tornou-se uma compradora compulsiva, transformou-se numa falsa beata e ultimamente deu-lhe para furtar pequenos objectos: canetas da vizinha, clips da papelaria, pacotes de açúcar do café, brinquedos no jardim infantil…
Preocupada, a Joana consultou um livro sobre estes estranhos impulsos para subtrair coisas de valor irrelevante e descobriu um palavrão: cleptomania. Descobriu também que está associada a perturbações psíquicas.
E foi por causa disto que me falou. Da estranha que existe dentro dela.
Não sabia o que lhe dizer: se negar que existia uma outra; ir ao médico; dar uma volta para se esquecer. Não me lembrei de nada! E quando sucumbia à minha aflição, ripostei: “Tens que te libertar, estás presa àquela conversa!” E ela, com um ar de quem já sabia, perguntou: “Para ir aonde?”
Enquanto dormitava no átrio de um aeroporto de Londres, sentou-se à minha frente uma família inglesa esguia. A mãe tinha um ar banal, de vestido castanho; o pai envergava uma fatiota cinzenta ligeiramente coçada; a adolescente era hippie e o miúdo chupava o polegar. Eram cerca de 5h30 da manhã.
Acordaram-me com uma discussão em voz baixa, tensos, a carregaram nos prefixos cheios de raiva. O pai não queria que a filha andasse com a mala de tiracolo meia desfeita, com listras finas tricolores, porque mais parecia uma drogada; a mãe defendia-a; a rapariga franzia a testa e olhava para o ar; o miúdo mantinha o dedo na boca.
O pai levantou-se e puxou a mala, a rapariga agarrou-se à mala, o pai deu-lhe uma bofetada e a filha respondeu com uma mordidela; a mãe puxou os cabelos do marido; o marido desatou aos pontapés à mulher e à filha; o miúdo agarrou-se às pernas da mãe, a chorar desalmadamente e a olhar para mim.
E eu estava atónito.
Apareceu a polícia, separaram a família e perdi-os de vista.
Desde então deixei de acreditar em famílias perfeitas.
Ela faleceu enquanto eu dormia. E não posso sequer dizer que acordei a meio da noite ou que despertei com um pressentimento esquisito. Acordei e pronto.
Alguém batia na porta. Fui abrir, um tipo passou-me um envelope e estendi uma mão ensonada. Era a notícia: “Lamentamos o falecimento de…”
Depois foi tudo muito rápido. Como de costume, a vida correu: não se guardaram minutos de silêncio, as crianças continuaram a brincar, as pessoas gracejavam e o mundo não parou.
Ontem, perante o espelho, quando olhei para estes olhos encovados, para as rugas incrustadas na testa, para a amarelidão dos dentes; quando apalpei o duplo queixo, medi a barriga e confirmei a curvatura das costas; quando me levantei e doeram-me as pernas, as articulações crocitaram e a urina correu em soluços prostáticos; ontem, dizia eu, constatei que o meu tempo já havia passado.
Telefonei à minha filha e a voz dela assegurou que o meu tempo já era outro. No autocarro tive inveja daquele par de namorados, ela branca e corada, ele moreno e corado. No emprego, olhei para os colegas e vi os namorados: os sussurros e enleios, os olhares e carícias... o que ciciariam? o que tocariam? Dei por mim, sentado defronte de um computador, a imaginar coisas…
Mas o que mais me aflige é este silêncio. O que mais me preocupa é esta paragem. O que me desgasta, aborrece, irrita, cansa e deixa ansioso é este nada. Esta rotina de saladas, sopas e frutas; estes recorrentes passeios de fim-de-semana, estes jantaricos de gritinhos, beijinhos e pancadinhas; estas manhãs de desporto sem competição ou de competição sem adversários. Estou só, raios!
E dizem: “Tem calma, pá! Vais ver que o tempo conserta tudo!”
Ou então: “Vai dar uma volta, vai ao cinema, vai até ao jardim…”
Mas o pior de tudo é quando me dizem que o silêncio deve ser escutado. Sinto logo um calafrio. Mas estas pessoas não dispõem de silêncio na vida deles? Moram ao lado de uma auto-estrada ou por cima de uma discoteca? Os vizinhos, os familiares, os colegas de trabalho não lhes dão um minuto de descanso que logo recomendam escutar o silêncio?
Nestes momentos quero estar só com a minha velhice e fazer as pazes com o tipo que entrevejo por entre estas lágrimas de saudade.