[135] Facas, de Valério Romão
Sim, confesso-me um admirador da escrita de Valério Romão. É verdade que gosto de todos os escritores com um pendor filosófico, que não tem de emergir só porque sim ou por vaidade, mas com uma intencionalidade literária, como tendo mesmo que ser assim, se não seria outra coisa qualquer e não era tão bom. E Valério Romão faz isso, o discorrer da erudição é acertado e tem pleno cabimento na história. David Lodge tem páginas e páginas nos seus romances onde martela o seu saber e bom gosto literário em momentos que passariam bem sem esses arroubos de erudito.
Era para começar por falar sobre o livro Facas, de Valério Romão, que me traz aqui, e desemboco noutra coisa, e que até vem a despropósito do conjunto de contos que se encontra neste livro editado pela Companhia das Ilhas, cuja introdução começa de forma rebuscada, "Facas é um livro que assume uma centralidade temática contrastante com a liberdade formal com a qual exprime, em mutações de forma e de tom ao longo dos contos que o compõem, as diversas declinações do objecto que empresta o título ao livro" - cruzes canhoto! - e que até pode ser um repelente de leitores ocasionais. No entanto, nesse site, o excerto transcrito faz-lhe justiça e, sobretudo, a nota de leitura de José Riço Direitinho é certeira e faz jus ao autor, e que se pode ler aqui.
O livro contém 3 contos, sendo indiferente a ordem da leitura, embora se pudesse dizer que o primeiro conto é tão inigualável, que dos seguintes apenas se pode afirmar que são bons e logo de seguida salientar que o primeiro, "de facto, realmente, sem dúvida..."
O primeiro conto é sobre um homem amputado, veterano de guerra, impotente, cuja mulher lhe é descaradamente infiel. Esse homem tem um filho, a quem ama incondicionalmente, mas um dia ele cansa-se e diz ao pai que "já é altura de teres a tua vida, de viveres a tua vida, de eu viver a minha vida sem ti." (p. 14).
Ao que o pai responde "Mas, sem ti, eu não tenho vida. (...) Cravo a estaca da minha existência em ti, tudo faço em função de ti, até me esquecer de que existo, de que preciso de comer e de dormir".
Este conto é sobre as insuficiências do amor paternal e da sua incapacidade em educar crianças e torná-las pessoas sãs. É um murro no estômago.